quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Capítulo 2 – A Rainha

Capítulo 2 – A Rainha




A morada de Zalian e Nayra tinha a peculiaridade de ser uma simples cabana e ao mesmo tempo estar conectada a todo um sistema hierárquico que girava em torno da rainha. De um lado da colina onde ela ficava, um observador avistava apenas uma choupana feita com troncos horizontais, com uma varanda na frente e uma ampla paliçada atrás. Nada tão incomum naquele cenário de improvisos. Do outro lado, porém, uma fortaleza se estendia do topo até a rua cá embaixo. Da cabana lá atrás, nem a ponta do telhado se via. Era a forma que as Jyssaras consentiam em ocupar o mesmo espaço na cidade, encerradas dentro do seu forte. 
Nayra espreguiçou-se na cama banhada pelos tênues raios de sol que atravessavam a cortina. Havia se despedido do marido e voltara a dormir. Contudo, as tarefas do dia a chamavam e não deveria negligenciá-las. Saltou do leito, disciplinada como deve ser a atitude adequada para uma rainha. Sentia-se feliz. Nestes últimos cinco anos havia crescido muito como pessoa e como mulher. Conseguira sair da gaiola intelectual em que as tradições exacerbadas a mantiveram por tanto tempo. Conseguira até controlar boa parte de seu temperamento irascível. Seria impossível sustentar a relação que tinha com Zalian de outra forma. Seria igualmente impossível levar a cabo os planos que tinha para seu povo. Lavou o rosto e se preparou para arrumar a cama. Foi quando a batida na porta a interrompeu.
Respirou fundo, dirigiu-se à porta, encostou-se na parede e abriu-a. Sem encarar quem estava ali disse:
– Bom dia, Biáh.
– Bom dia, Alteza.
Com olhar severo a velha enhora fez sinal para que duas camareiras entrassem para arrumar o quarto.
Biáh era uma mulher na casa dos sessenta anos. De feições macilentas e  sobrancelhas largas, ainda negras, tinha um porte solene e uma atitude recriminadora. Avaliou de cima abaixo os trajes de dormir de sua rainha. Nayra aprumou-se e caminhou pelo tapete. 
– Certamente você irá encontrar algum defeito nesta camisola também, não é Biáh?
A mulher abriu a boca e levantou o dedo e para proferir o devido argumento, mas Nayra a interrompeu.
– Já sei, muito feminina. Nada adequada a uma rainha das Jyssaras. Pode dar ao homem a impressão errada de que eu esteja pedindo sua atenção, não é isto, Biah?
– Alteza, me parece que a senhora tem recorrido demais a este tipo de indumentária. Ainda ontem vi chegarem… vestidos. Sim, é esta impressão que está passando, Alteza.
Nayra fez um sinal discreto com os dedos para que serva se aproximasse. Num tom baixo, mas não o bastante, falou:
– É esta a idéia.
Biáh ergueu as sobrancelhas escandalizada, mas antes que pudesse reagir, a jovem soberana a conduziu até a porta.
– Minha fiel Biáh, eu admiro a sua dedicação e compreendo sua inquietude. Mas você percebe esta porta, pela qual eu e você passamos todos os dias e que meu marido raramente usa? É a divisão precisa entre todo o resto do planeta onde exerço as minhas obrigações com meus súditos, incluída você, e a zona neutra, que é esta cabana, onde posso ser uma simples esposa de um homem que não pertence às Jyssaras.
A governanta recuou um passo e com o olhar duro, inquiriu:
– É isto que pretende, senhora? É com isto que irá contentar-se?
– Sim.
– Senhora, não basta trazer ao nosso povo a vergonha de se unir a um homem tão, tão…
– Independente?
– Arrogante! E voluntarioso! – Irrompeu exasperada – A senhora esquece o quão dolorosa foi nossa história? Quanto lutaram a sua mãe e sua avó? Como, ao final de muito sacrifício, conseguiram impor a ternura pela força, a paz pelas armas?
– Basta! – Os olhos de Nayra chamejavam. As camareiras imediatamente ficam imóveis. – Saiam! Saiam daqui, todas!
Biáh retirou-se indignada, mas submissa. A outras duas sumiram sem imediatamente.
Contrafeita, Nayra dirigiu-se ao quarto ao lado para trocar-se. Podia ter sustentado a argumentação, asseverou a si mesma, podia ter imposto sua autoridade de outra forma. Mas não! Foi de novo vítima de seu temperamento. Ah, Deus! Quanto faltava ainda para amadurecer e poder manejar estas situações? Olhou pela janela, lá fora o sol brilhava indiferente à sua irritação. 

O clima ainda estava tenso entre as duas quando Biáh conduziu a rainha a sentar-se na cabeceira de uma longa mesa rústica. Foi-lhe servido um saboroso desjejum com sucos, frutas, pão e queijo. Não havia homens servindo-a. Ela agora vestia seu costumeiro traje, que caracterizava a natureza guerreira de seu clã. Era negro e justo ao corpo, ressaltando suas formas. Tinha texturas semelhantes ao couro e à malha, mas tratava-se de um material bastante maleável e que proporcionava extremo conforto no uso. A mesa ficava no centro de uma salão todo feito de troncos. Os ornamentos e móveis eram feitos também de madeira rústica com detalhes em ferro batido, em lâminas com espessura que indicavam a necessidade da força masculina para forjá-las. Havia ainda alguns componentes improvisados de metais diferentes e madeira laminada, trazidos das cidades.
Aquela data também era utilizada para reunião do estado maior das Jyssaras. Ali se definiam as políticas com os outros povos e, em especial, com o povo de Maron, com quem dividiam o mesmo espaço.
Nayra tinha consciência de que a decisão de unificar os dois grupos tinha sido um tanto precipitada. Na época em que ela e Zalian decidiram por isto, havia um clima de solidariedade permeando tudo e todos. Afinal, tinham combatido uma guerra juntos. Tinham perdido, é verdade, mas o sofrimento comum sempre propicia a solidariedade. E uma guerra lutada juntos forja um elo de amizade duradouro. Foi o que pensaram, mas não demorou muito para que as diferenças culturais começassem a se manifestar.
Ela viu o primeiro sinal disto quando tomaram café juntos naquela sala. Nestes casos o protocolo previa que serviçais homens pudessem ser admitidos para servir ao “companheiro da rainha” – caso contrário ele teria que ser servido pelas mulheres, o que seria inadmissível. Mas o que mais impressionou a jovem não foi desprezo velado que as mulheres que a serviam manifestavam por Zalian, isto era esperado. O que a surpreendeu foi que a mesma atitude era tomada pelos homens. Eles mesmos desdenhavam a figura de Zalian, condenando-o com olhares de soslaio por estar na queda condição totalmente imprópria de ser servido.
A tradição matriarcal já havia lançado raízes tão profundas na alma daquelas pessoas que moldava suas atitudes nas tarefas mais corriqueiras. Naquele momento Nayra teve um vislumbre de quão árdua seria sua missão para mudar esta situação.
Em seguida teve uma reunião breve era com as oficiais, como de praxe, para saber a programação do dia. Depois passou duas horas com sua treinadora. Não negligenciava o preparo físico nem treino com o arco. Sua preocupação não limitava-se a estar pronta para defender-se a si e ao seu povo, mas também para inspirar as jovens que tinham nela o referencial maior. 
Na sequencia passou a uma cerimônia de longa tradição que era atribuída somente à rainha: deveria aprovar os casais e os pedidos de permissão para casamento. Era algo basicamente protocolar, somente um rito tradicional. Jamais em seu tempo tinha recusado alguma escolha ou desfeito algum par. Nayra tinha a clara noção de que cada mulher tinha que saber escolher com quem partilharia sua vida. Mas isto também fazia parte de todo aquele sistema cultural em que a rainha tomava parte da vida dos súditos de modo maternal, incidindo nas decisões mais privadas que cada Jyssara. 
O almoço se deu, como sempre, nos refeitórios de Marônica, onde todos comiam juntos. Fora uma decisão votada com ampla maioria: A refeição do meio dia teria que ser um momento de congraçamento entre todos. E Nayra apreciava isto, descobrira que gostava de estar entre o povo. O convívio que a envolveu na aventura de Stella Pax a deixou mais gente, mais apta à interação social. É certo que lhe reservavam uma mesa à parte, assim como que para todos os que desempenhavam funções chave e de liderança. Mas comiam sob o mesmo teto. Isto, embora a agradasse, consistia em mais um ponto de aflição para as correntes tradicionalistas em seu povo, que deploravam tal mistura.
Depois do almoço caminhou pelo povoado. Muitas pessoas a cumprimentavam e sorriam para ela. Nos portões da escolinha as mães a apontavam para seus filhos no colo. Os artesãos paravam o que estavam fazendo para olhar para ela. Era admirada, sem dúvida. Mas não como Lena.  
A irmã de Alyena possuía com seu povo algo diferente da relação hierárquica. Era uma cumplicidade, uma facilidade de acesso que levada muitos a pedirem-lhe conselhos e orientações. Lena conseguia cativar o afeto de todos num nível mais próximo, mais pessoal. A gente de Zalian vivia a procurá-la para que resolvesse suas desavenças ou para que lhes indicasse maneiras de melhor conduzir os relacionamentos afetivos. Assim como Alyena tinha um talento e um magnetismo pessoal em torno de si para gerar contendas, assim a irmã os tinha para amenizá-las. Eram muito parecidas, embora em lados opostos, e tinham muito em comum. Às vezes até o mesmo tom sutil e acintoso no falar. Em especial nas assembléias deliberativas. Mais de uma vez se sentira incomodada com as observações feitas por Lena, feitas com uma doçura inculpável, mas que incidiam sobre assuntos da alçada da rainha, às vezes influenciados para uma resolução indesejada.
Talvez fosse algo genético, ponderou Nayra, em que a voz de uma lembrava a outra, e não necessariamente possuísse aquele timbre provocativo e zombeteiro. À sua memória voltou imediatamente o episódio em que Alyena lhe fez troça e quis matá-la na biblioteca de Stella Pax. Do que a chamou, mesmo? “Apenas uma gata assustada que não sabe como descer do telhado”. Com uma engenhosidade maquiavélica conseguira aproveitar-se de seu pavor de alturas deixando-a pendurada no topo dos dez andares da imensa biblioteca. Um tremor percorreu seu corpo ao lembrar da iminente queda enquanto a gargalhada odiosa de Alyena ecoava estridente. Sacudiu a cabeça para se desvencilhar da cena. Reconduziu o pensamento ao o tema original, Yalena, mas percebeu que algo dos maus sentimentos que tinha pela outra involuntariamente foram aplicados nesta. Sacudiu novamente a cabeça. “Não! Não é certo!” recriminou-se “Mesmo sendo irritante em alguns momentos, Lena não é má, e não posso cultivar maus pensamentos a respeito dela”.
O problema para Nayra é que Lena havia avançado um pouco além do meramente irritante e passava a representar um real inconveniente. Talvez ela ainda mantivesse apreço pela sua antiga condição de mulher do líder (e, portanto, líder também), querendo reter algo deste poder. O caso era que Lena, que sempre distribuíra conselhos para o povo de Zalian, influenciando-o e acabando por moldá-lo a longo prazo, estava agora sendo procurada em casa por seu próprio povo.

Lena começava a acumular uma certa ascendência sobre as Jyssaras.

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