segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Alyena II - Capítulo 3 - Lian

Capítulo 3 – Lian


– O que é uma assembléia, mamãe?
O menino esmerava-se em dar cor a um desenho. Uma profusão de lápis espalhava-se sobre a mesa. Seu colorido contrastava com a tonalidade amarelada e envelhecida do papel sob as mãos de Lian, apanhado em resmas nos escritórios abandonados da Cidade Morta.
– Ora, é aquilo que você já viu várias vezes. – Respondeu Lena do outro lado da cozinha. – Um monte de gente reunida.
– Isso eu sei, mamãe. Mas para que serve?
– Hum… estamos curiosos hoje.
– É que é chato ir lá. As pessoas ficam falando, falando, nunca termina.
– Mas do que você está reclamando, você foi uma vez só. Ainda porque Zilah ficou doente.
– Mas é chato. Vou ter que ir hoje de novo?
– Claro que não.
– Tá bom – disse Lian em tom claramente satisfeito sem tirar os olhos da folha.
Após algum tempo de silêncio:
– Você não me disse?
– O que, querido?
– O que é uma assembléia.
– Muito bem, – Lena sentou-se ao lado do menino – lá a gente, nós adultos, discutimos coisas importantes para nossa cidade. É lá que a gente decide se vai construir uma nova escola, uma nova praça para garotos como você brincarem, estas coisas assim.
– Ah! então é importante você participar.
– Bem, eles continuam me chamando, então eu vou.
– É verdade que tem poucas crianças?
– De onde ouviu isto?
– Na assembléia que eu fui. Tia Demini falou que nós devíamos ter mais bebês e que parece que tem algum problema que eles não nascem.
Lena olhou para aquele garotinho, tão novo e já preocupando-se com assuntos adultos. Arrependeu-se de tê-lo levado à reunião.
– Então? – insistiu Lian.
– Bem, – tornou Lena encostando a cabeça na dele, fazendo seus cabelos longos roçarem-lhe o ombro com um cheiro gostoso. – parece que alguma coisa aconteceu no passado que dificulta um pouco que nasçam bebês. Mas eles continuam nascendo. Você nasceu, não é mesmo?
– Mas eu não sou bebê!
A mãe riu-se.
– Claro que não, você já é um homenzinho. – voltou-se para folha de papel – Que desenho legal!
Liam largou o lápis e recostou-se na cadeira para desimpedir a visão de sua obra.
– Agora você explica. – Disse a mãe – O que é isto aqui em cima?
– É a Stella Pax. Pegando fogo, olha aqui.
– Hum… que terrível, não?
– Tinha uma mulher lá dentro dela.
Lena contemplou o vazio por um instante. Lian a trouxe de volta:
– Ela era má, não era, mamãe?
– Digamos – ponderou a mãe – que era alguém que não conseguiu ser feliz.
– Meus amiguinhos na escola dizem que ela era minha tia.
Lena respirou fundo. Não era dos seus assuntos favoritos para conversar. Principalmente com seu filho. Evitava ao máximo mencionar esta ligação entre eles e Alyena, mas sabia ser impossível uma vez que eram justamente estas histórias, que circulavam por todos os cantos, a força propulsora da nova cidade.
– Sim, Lian – disse olhando-o nos olhos – ela era minha irmã, portanto era sua tia.
– Ela morreu, não morreu?
Lena juntou as mãos brincando com os dedos e fixou olhar na explosão dramática que seu menino retratara.
– Sim, meu querido. Ela morreu.
– Ela era bonita?
– Sim.
– Como você?
– Mais.
– Mentira! Ninguém é mais bonita que você, mamãe!
– Olha só, tão jovem e já tão galanteador! – Deu-lhe um beliscão no braço.
Antes que Lian pudesse perguntar o que seria um galanteador Lena tratou de voltar ao desenho e manter as explicações do lado dele:
– E estes aqui embaixo, quem são?
– Este é o tio Zalian com a tia Nayra.
– Muito bem. E estes no canto?
– Tio Steno com a tia Demini, oras!
– Você caprichou, hem? E estes do outro canto?
– Eu e você – ele apontou com dedinho demonstrando que não poderia haver resposta mais lógica.
– Hei, mas espere aí! – Lena fingiu um tom severo – Você está do meu tamanho. Não acha que exagerou um pouquinho, não?
– Eu fiz de propósito.
– Porque?
– Para o desenho ficar igual nos dois lados e…
– E?
– Para você não ficar sozinha. Eu quero crescer rápido para ficar do seu lado com os adultos.
Lena sentiu seus olhos umedecerem. Deu um beijo na cabeça do menino e sussurrou em seu ouvido:
– Com você eu nunca estarei sozinha.
Zilah apareceu na porta e a chamou.
– Continue se desenho, querido. Mamãe tem que atender alguém.
– Sim, mamãe.
– E, Lian…
– Sim?
– Não queira crescer tão rápido, querido. Aproveite cada momento da sua vida, está bem?
– Sim, mamãe.

***

Lena passou da cozinha ao outro cômodo. Procurou enxergar através da cortina que cobria a porta da sala principal e dirigiu-se a Zilah:
– Quem é?
– Bem, mestra Lena… 
– Diga, mulher – Lena disse num sussurro impaciente.
– Bem, fiquei em dúvida se deveria deixá-la entrar…
– Não Vá me dizer que é aquela Jyssara com seu namorado “de fora”?
– Não, não…
– Então está bem, se é alguém de nosso povo está tranquilo.
– Não, eu não quis dizer que não é uma Jyssara…
– Zilah!… Que confusão é esta. Afinal é a Jyssara ou não é?
– É uma Jyssara, mas não a que a senhora pensa.
Zilah fez uma pausa para enfatizar a declaração.
– Seu nome é Biáh. Eu sei quem é. É a serva pessoal da rainha Nayra…

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Capítulo 2 – A Rainha

Capítulo 2 – A Rainha




A morada de Zalian e Nayra tinha a peculiaridade de ser uma simples cabana e ao mesmo tempo estar conectada a todo um sistema hierárquico que girava em torno da rainha. De um lado da colina onde ela ficava, um observador avistava apenas uma choupana feita com troncos horizontais, com uma varanda na frente e uma ampla paliçada atrás. Nada tão incomum naquele cenário de improvisos. Do outro lado, porém, uma fortaleza se estendia do topo até a rua cá embaixo. Da cabana lá atrás, nem a ponta do telhado se via. Era a forma que as Jyssaras consentiam em ocupar o mesmo espaço na cidade, encerradas dentro do seu forte. 
Nayra espreguiçou-se na cama banhada pelos tênues raios de sol que atravessavam a cortina. Havia se despedido do marido e voltara a dormir. Contudo, as tarefas do dia a chamavam e não deveria negligenciá-las. Saltou do leito, disciplinada como deve ser a atitude adequada para uma rainha. Sentia-se feliz. Nestes últimos cinco anos havia crescido muito como pessoa e como mulher. Conseguira sair da gaiola intelectual em que as tradições exacerbadas a mantiveram por tanto tempo. Conseguira até controlar boa parte de seu temperamento irascível. Seria impossível sustentar a relação que tinha com Zalian de outra forma. Seria igualmente impossível levar a cabo os planos que tinha para seu povo. Lavou o rosto e se preparou para arrumar a cama. Foi quando a batida na porta a interrompeu.
Respirou fundo, dirigiu-se à porta, encostou-se na parede e abriu-a. Sem encarar quem estava ali disse:
– Bom dia, Biáh.
– Bom dia, Alteza.
Com olhar severo a velha enhora fez sinal para que duas camareiras entrassem para arrumar o quarto.
Biáh era uma mulher na casa dos sessenta anos. De feições macilentas e  sobrancelhas largas, ainda negras, tinha um porte solene e uma atitude recriminadora. Avaliou de cima abaixo os trajes de dormir de sua rainha. Nayra aprumou-se e caminhou pelo tapete. 
– Certamente você irá encontrar algum defeito nesta camisola também, não é Biáh?
A mulher abriu a boca e levantou o dedo e para proferir o devido argumento, mas Nayra a interrompeu.
– Já sei, muito feminina. Nada adequada a uma rainha das Jyssaras. Pode dar ao homem a impressão errada de que eu esteja pedindo sua atenção, não é isto, Biah?
– Alteza, me parece que a senhora tem recorrido demais a este tipo de indumentária. Ainda ontem vi chegarem… vestidos. Sim, é esta impressão que está passando, Alteza.
Nayra fez um sinal discreto com os dedos para que serva se aproximasse. Num tom baixo, mas não o bastante, falou:
– É esta a idéia.
Biáh ergueu as sobrancelhas escandalizada, mas antes que pudesse reagir, a jovem soberana a conduziu até a porta.
– Minha fiel Biáh, eu admiro a sua dedicação e compreendo sua inquietude. Mas você percebe esta porta, pela qual eu e você passamos todos os dias e que meu marido raramente usa? É a divisão precisa entre todo o resto do planeta onde exerço as minhas obrigações com meus súditos, incluída você, e a zona neutra, que é esta cabana, onde posso ser uma simples esposa de um homem que não pertence às Jyssaras.
A governanta recuou um passo e com o olhar duro, inquiriu:
– É isto que pretende, senhora? É com isto que irá contentar-se?
– Sim.
– Senhora, não basta trazer ao nosso povo a vergonha de se unir a um homem tão, tão…
– Independente?
– Arrogante! E voluntarioso! – Irrompeu exasperada – A senhora esquece o quão dolorosa foi nossa história? Quanto lutaram a sua mãe e sua avó? Como, ao final de muito sacrifício, conseguiram impor a ternura pela força, a paz pelas armas?
– Basta! – Os olhos de Nayra chamejavam. As camareiras imediatamente ficam imóveis. – Saiam! Saiam daqui, todas!
Biáh retirou-se indignada, mas submissa. A outras duas sumiram sem imediatamente.
Contrafeita, Nayra dirigiu-se ao quarto ao lado para trocar-se. Podia ter sustentado a argumentação, asseverou a si mesma, podia ter imposto sua autoridade de outra forma. Mas não! Foi de novo vítima de seu temperamento. Ah, Deus! Quanto faltava ainda para amadurecer e poder manejar estas situações? Olhou pela janela, lá fora o sol brilhava indiferente à sua irritação. 

O clima ainda estava tenso entre as duas quando Biáh conduziu a rainha a sentar-se na cabeceira de uma longa mesa rústica. Foi-lhe servido um saboroso desjejum com sucos, frutas, pão e queijo. Não havia homens servindo-a. Ela agora vestia seu costumeiro traje, que caracterizava a natureza guerreira de seu clã. Era negro e justo ao corpo, ressaltando suas formas. Tinha texturas semelhantes ao couro e à malha, mas tratava-se de um material bastante maleável e que proporcionava extremo conforto no uso. A mesa ficava no centro de uma salão todo feito de troncos. Os ornamentos e móveis eram feitos também de madeira rústica com detalhes em ferro batido, em lâminas com espessura que indicavam a necessidade da força masculina para forjá-las. Havia ainda alguns componentes improvisados de metais diferentes e madeira laminada, trazidos das cidades.
Aquela data também era utilizada para reunião do estado maior das Jyssaras. Ali se definiam as políticas com os outros povos e, em especial, com o povo de Maron, com quem dividiam o mesmo espaço.
Nayra tinha consciência de que a decisão de unificar os dois grupos tinha sido um tanto precipitada. Na época em que ela e Zalian decidiram por isto, havia um clima de solidariedade permeando tudo e todos. Afinal, tinham combatido uma guerra juntos. Tinham perdido, é verdade, mas o sofrimento comum sempre propicia a solidariedade. E uma guerra lutada juntos forja um elo de amizade duradouro. Foi o que pensaram, mas não demorou muito para que as diferenças culturais começassem a se manifestar.
Ela viu o primeiro sinal disto quando tomaram café juntos naquela sala. Nestes casos o protocolo previa que serviçais homens pudessem ser admitidos para servir ao “companheiro da rainha” – caso contrário ele teria que ser servido pelas mulheres, o que seria inadmissível. Mas o que mais impressionou a jovem não foi desprezo velado que as mulheres que a serviam manifestavam por Zalian, isto era esperado. O que a surpreendeu foi que a mesma atitude era tomada pelos homens. Eles mesmos desdenhavam a figura de Zalian, condenando-o com olhares de soslaio por estar na queda condição totalmente imprópria de ser servido.
A tradição matriarcal já havia lançado raízes tão profundas na alma daquelas pessoas que moldava suas atitudes nas tarefas mais corriqueiras. Naquele momento Nayra teve um vislumbre de quão árdua seria sua missão para mudar esta situação.
Em seguida teve uma reunião breve era com as oficiais, como de praxe, para saber a programação do dia. Depois passou duas horas com sua treinadora. Não negligenciava o preparo físico nem treino com o arco. Sua preocupação não limitava-se a estar pronta para defender-se a si e ao seu povo, mas também para inspirar as jovens que tinham nela o referencial maior. 
Na sequencia passou a uma cerimônia de longa tradição que era atribuída somente à rainha: deveria aprovar os casais e os pedidos de permissão para casamento. Era algo basicamente protocolar, somente um rito tradicional. Jamais em seu tempo tinha recusado alguma escolha ou desfeito algum par. Nayra tinha a clara noção de que cada mulher tinha que saber escolher com quem partilharia sua vida. Mas isto também fazia parte de todo aquele sistema cultural em que a rainha tomava parte da vida dos súditos de modo maternal, incidindo nas decisões mais privadas que cada Jyssara. 
O almoço se deu, como sempre, nos refeitórios de Marônica, onde todos comiam juntos. Fora uma decisão votada com ampla maioria: A refeição do meio dia teria que ser um momento de congraçamento entre todos. E Nayra apreciava isto, descobrira que gostava de estar entre o povo. O convívio que a envolveu na aventura de Stella Pax a deixou mais gente, mais apta à interação social. É certo que lhe reservavam uma mesa à parte, assim como que para todos os que desempenhavam funções chave e de liderança. Mas comiam sob o mesmo teto. Isto, embora a agradasse, consistia em mais um ponto de aflição para as correntes tradicionalistas em seu povo, que deploravam tal mistura.
Depois do almoço caminhou pelo povoado. Muitas pessoas a cumprimentavam e sorriam para ela. Nos portões da escolinha as mães a apontavam para seus filhos no colo. Os artesãos paravam o que estavam fazendo para olhar para ela. Era admirada, sem dúvida. Mas não como Lena.  
A irmã de Alyena possuía com seu povo algo diferente da relação hierárquica. Era uma cumplicidade, uma facilidade de acesso que levada muitos a pedirem-lhe conselhos e orientações. Lena conseguia cativar o afeto de todos num nível mais próximo, mais pessoal. A gente de Zalian vivia a procurá-la para que resolvesse suas desavenças ou para que lhes indicasse maneiras de melhor conduzir os relacionamentos afetivos. Assim como Alyena tinha um talento e um magnetismo pessoal em torno de si para gerar contendas, assim a irmã os tinha para amenizá-las. Eram muito parecidas, embora em lados opostos, e tinham muito em comum. Às vezes até o mesmo tom sutil e acintoso no falar. Em especial nas assembléias deliberativas. Mais de uma vez se sentira incomodada com as observações feitas por Lena, feitas com uma doçura inculpável, mas que incidiam sobre assuntos da alçada da rainha, às vezes influenciados para uma resolução indesejada.
Talvez fosse algo genético, ponderou Nayra, em que a voz de uma lembrava a outra, e não necessariamente possuísse aquele timbre provocativo e zombeteiro. À sua memória voltou imediatamente o episódio em que Alyena lhe fez troça e quis matá-la na biblioteca de Stella Pax. Do que a chamou, mesmo? “Apenas uma gata assustada que não sabe como descer do telhado”. Com uma engenhosidade maquiavélica conseguira aproveitar-se de seu pavor de alturas deixando-a pendurada no topo dos dez andares da imensa biblioteca. Um tremor percorreu seu corpo ao lembrar da iminente queda enquanto a gargalhada odiosa de Alyena ecoava estridente. Sacudiu a cabeça para se desvencilhar da cena. Reconduziu o pensamento ao o tema original, Yalena, mas percebeu que algo dos maus sentimentos que tinha pela outra involuntariamente foram aplicados nesta. Sacudiu novamente a cabeça. “Não! Não é certo!” recriminou-se “Mesmo sendo irritante em alguns momentos, Lena não é má, e não posso cultivar maus pensamentos a respeito dela”.
O problema para Nayra é que Lena havia avançado um pouco além do meramente irritante e passava a representar um real inconveniente. Talvez ela ainda mantivesse apreço pela sua antiga condição de mulher do líder (e, portanto, líder também), querendo reter algo deste poder. O caso era que Lena, que sempre distribuíra conselhos para o povo de Zalian, influenciando-o e acabando por moldá-lo a longo prazo, estava agora sendo procurada em casa por seu próprio povo.

Lena começava a acumular uma certa ascendência sobre as Jyssaras.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Alyena II - Capítulo 1 A Represa

Alyena II - Capítulo 1 A Represa

Naquela manhã Zalian levantou decido a não se importar mais com os pesadelos. Se não me preocupar com eles, vão embora, pensou. Um café da manhã reforçado e o beijo apaixonado de Nayra consolidaram sua decisão. Saiu para o sol. Do alto da colina onde estabelecera sua cabana dava para ver toda a cidade. Levou a mão à testa para se proteger da claridade.
O dia estava maravilhoso naquele final de verão. Ótimo para uma investida pelo mato nos arredores, uma voz interior lhe disse. Respirou fundo e conteve os pensamentos, lá embaixo Steno esperava para mais uma visita à obras da hidrelétrica. Haveria chance de retornar aos velhos tempos? Esta pergunta ficou dançando em sua cabeça junto com imagens dos lugares que conheceu em todas as andanças, enquanto descia pelo caminho de cercado de pedras e relva. Este era o seu lugar agora. Em caráter definitivo. Isto era um pouco assustador.
Contemplou novamente os telhados de materiais diversos que compunham a nova paisagem. Não era muito diferente da cidade anterior, tinha o mesmo espírito do improviso. Casas construídas de pedras ao lado de outras feitas de tijolos e argamassa ajuntados na Cidade Morta. Os telhados variavam de telhas normais a pranchas de diversos tipos e texturas. Nas ruas, um esboço do que poderia ser uma paisagem urbana no futuro, sem o confinamento estreito e atulhado das cidades antigas. Felizmente nossos organizadores procuraram ler a respeito antes de delimitar a largura das estradas, pensou.
As casinhas estavam se multiplicando. Por causa da derrota de Stella Pax e das histórias que correram pelos povoados houve uma grande confluência de gente para ali. As pessoas queriam conhecer quem teve a ousadia de derrubar a Estrela, queriam ver de perto seus heróis mitológicos. Principalmente sentiam-se seguras. Era muito difícil estimar com precisão quantos moradores havia, mas seguramente já passavam dos dez mil.
A outra cidade não tinha nome. Desapareceu incógnita. Nenhum registro histórico lhe fará a devida reverência no futuro. Era apenas um lugar, sem duração e sem nome. Mas não para Zalian. Ali tinha empenhados toda a sua história, amigos, valores. Mesmo sendo arredio, mantendo uma atitude reservada e sumindo de vez em quando, sempre voltava. Para ele aquele lugar tinha nome, se chamava lar. Lembrava-se nitidamente da coluna de fumaça negra em que seu lar se tornou, vista da distante colina onde se encontravam ele e seus amigos naquela tarde. Os raios devastadores despencavam do céu com fúria implacável e somente o rumor surdo e atrasado dos impactos ao longe trazia uma noção da destruição que causavam. Instintivamente cerrou os punhos à lembrança. Malodamnus o “imperador”, como o canalha fez-se chamar, foi quem perpetrou aquele ataque covarde. Covarde não porque Maron e as Jyssaras não tivessem meios e coragem para se defender de um ataque dentro do normal. Eles a tinham, sem dúvida. A covardia estava em usar a Estrela. Quem na face deste planeta poderia sonhar em fazer frente àquele poder formidável? Foi um massacre total, com um componente ainda mais odioso na execução: Alyena.
A população inteira teria sido varrida, não fosse a estratégia genial de Maron. Com um simples apertar de botões sobre a ponte, ele conseguiu dizimar mais da metade do exército de Malodamnus. A confusão de águas que causou permitiu que as mulheres e crianças pudesseam escapar. Muitas vidas foram salvas, mas o preço foi a sua própria.
Eis temos agora erguida, Marônica, a cidade fundada sobre os escombros da obra e da morte heróica de Maron, cujo nome assim fora dado em sua homenagem.
Zalian o tinha em grande conta. Sempre o respeitou e recebeu respeito da parte dele. Foi um grande líder que soube tomar as decisões certas pelo seu povo, inclusive a mais radical de todas, quando o que estava em jogo era a própria vida. Maron era um homem determinado até à obstinação, mas sabia ouvir os diversos lados de cada questão. Conseguia reunir em si a prevalência de um tirano com a consensualidade de um bom político. Poderia ser um governador, mas teria sido ainda melhor um rei. Era amado por todos, não havia dúvidas.
Agora o povo se voltava para ele, Zalian. E, Deus! Como esta carga se tornava pesada a cada dia. Não possuía, com certeza absoluta, metade das virtudes de seu predecessor. Como é possível que as coisas se abrangem e revirem de tal jeito que um sujeito como ele vem a cair numa situação dessas. Nos seus passeios pelo povoado, observava as pessoas distraídas em seus afazeres. Mas ao passar, sentia os olhares que lhe dirigiam, quase que como uma compressão na epiderme de suas costas. Olhares de Admiração, expectativa, confiança. Seria ele digno deles?
– Vamos, cara! Tá devagar hoje. Dormiu demais?
Steno era sempre um contento a mais na sua rotina diária. Sempre lhe trazia o espírito do folguedo com que se divertiram desde a infância. Seu cabelo indefinito entre o louro e ruivo caia sobre os olhos em quanto ele ria e manobrava o guidom da bicicleta em que vinha embarcado.
– Onde arrumou isto?
– Agora temos estradas, velho! Nada melhor que pedalar. Se quiser arrumo a da Demini emprestada para você.
– Pois sim! Trate de ir apeando porque eu não acelerar um minuto minha caminhada.
– Ih! Tá de mau humor. Que foi, a rainha te destronou?
– Não dormi bem.
– Ah, então ela não te destronou…
Zalian deu safanão no amigo e com o dedo em riste disse:
– O convívio com aquela pirralha está te deixando folgado. Te orienta…
Alcançaram a margem do rio e a seguiram à montante. Era uma caminhada de quarenta minutos até a barragem. Usavam este tempo para suas reuniões matinais particulares antes de conversarem com o pessoal. Este seria um dia um pouco mais acelerado pois haveria uma assembléia do Conselho à noite. 
Quando chegaram a atividade já estava em bom ritmo. A muralha da nova represa era bem maior que a anterior. Steno utilizou toda a experiência adquirida para ampliar ambiciosamente o empreendimento. A arranjo topográfico era propício, ele tinha consciência. Aquele rio estava disposto a dar muito mais do que poderia aproveitar o projeto anterior, improvisado e sem maquinário adequado. Agora, com a ajuda das máquinas, sobretudo, dos tratores movidos a óleo diesel, tudo parecia possível. E nem tudo foi perdido na destruição. Eles puderam aproveitar boa parte do canal de desvio do rio, o que significou uma relevante economia de trabalho. Pelas suas estimativas aquelas turbinas teriam capacidade de prover eletricidade para uma Marônica de cinquenta mil habitantes com folga. 
Antes de se reunirem com os demais, Steno convidou o amigo para subir ao topo da represa. À entrada do portão feito de ripas e tela de arame foram recebidos por dois encarregados. Ambos empenhavam-se discretamente em chegar primeiro aos cumprimentos.
– Bom dia, mestre Steno – saudou Estevão, que era do mesmo povo que ele. Em seguida voltou-se com reverência acentuada para Zalian – Bom dia, mestre Zalian.
Tinha nas mãos duas canecas de alumínio bastante amassadas, mas com um fumegante conteúdo de café, o que foi imediatamente bem-vindo.
Em seguida foi a vez da representante das Jyssaras, Emília, que dividia com Estevão o poder nas atividades operacionais da obra.
– Bom dia, mestre Steno.
– Bom dia, Emília. Você está especialmente bem uniformizada hoje. Esta farda lhe cai muito bem.
A mulher estava por volta dos quarenta anos e tinha um porte de quem se exercitava diariamente. O código guerreiro das Jyssaras impunha uma disciplina rígida àquelas mulheres. Ela recebeu o elogio com reserva. Virou-se para Zalian e o cumprimentou solene:
– Sua Alteza. – Fez uma curta mesura.
Steno levou a mão à boca e Zalian podia apostar que estava segurando uma gargalhada. Sem jeito e com o semblante solene aceitou a saudação, anuindo com a cabeça. Passaram a diante se subiram as escadas que davam para o corredor largo e em arco de piso cru.
– Não diga nada!
– De modo algum, vossa Alteza Real. – Respondeu o outro agora sem conter o riso.
Vendo que o amigo ficara amuado, contemporizou.
– Zalian, tenha um pouco de compaixão. É a primeira vez que a mulher lhe dá bom dia em meses desde que assumiu a função. Imagine quanto não deve ter sido difícil para ela rebaixar-se a cumprimentar um homem que está acima dela? E mais, que dorme com a sua rainha
– Sou marido dela!
– Dá no mesmo. Tenha um pouco de paciência com a mulher.
– Não estou chateado com ela… é que…
– Amigo, você é o chefe, o grande Mestre Zalian. Deve aceitar isto.
– Bah! – Disse o outro, levantando s mãos e deixando-as cair enquanto se aproximava da amurada – Você sabe que não tenho esta vocação.
– Você acha que não tem.
– Para mim, Steno, a vida se resumiria em me embrenhar no mato e caçar. Só isto. É pedir demais. Esta coisa de administração me cansa.
– Não pense assim, é só você…
– Esqueça. Não adianta conversarmos tudo isto de novo.
Um silêncio interpôs-se entre eles.
– Você acha – reatou Zalian enquanto contemplava a floresta do outro lado do rio – que conseguiremos colocá-la para trabalhar no mês que vem?
– Temos que conseguir, Zal. Estamos consumindo muito combustível nos geradores e nos veículos. 
– Hum…
– Os reservatórios dos postos de gasolina das cidades próximas estão rareando e das distribuidoras também. Alguns postos ainda não tinham sido equipados com acondicionamento avançado na época do cataclisma e seus combustíveis não eram ainda de última geração. Simplesmente tiveram seu conteúdo apodrecido. O mesmo com os carros, você sabe.
É importante que fiquemos livres desta necessidade e passemos a usar somente motores elétricos.
– Vamos buscar mais longe.
Steno juntou-se a ele olhando para a construção abaixo 
– O problema é que tem mais gente atrás dos combustíveis. Quanto mais as equipes se distanciam de Marônica, mais ficam expostas a ataques. Isto sem falar que acabamos invadindo territórios que outros povoados consideram como seus.
– Tem razão, não havia pensado nisto – levou a mão ao queixo, o verde do mato prendia sua atenção – Vamos chamar mais gente para acelerar a obra. Este pessoal não pára de chegar de tudo quanto é canto. Vamos pô-los para trabalhar.
– Bem, este pode ser mais um assunto para a reunião.
– Sim, claro…
Um movimento rápido na floresta chamou sua atenção. Deu uma leve cutucada em Steno e disse:
– Você viu?
– Viu o que?
– Ali adiante! Entre aquelas árvores.
Zalian acurou a visão para ver se capturava o movimento caso se repetisse. E ele se repetiu, mas um pouco mais à direita.
– Ali!
– Ali, onde, Zal? O que você está falando?
Desta vez o fenômeno aconteceu mais claro e mais devagar, embora fosse numa fração de segundos. O que ele viu ressaltou-se no fundo verde escuro das árvores: uma mulher de cabelos longos e um esvoaçante vestido branco.
– Está tudo bem, amigo? – Steno segurou-o no ombro.
Zalian forçou os olhos, mas nada restara além dos musgos, ramos e folhas balançando na brisa.
– Tudo bem, tudo bem. Mas acho que não dormi nada bem mesmo.















O Relógio Onipresente









O relógio onipresente, no celular, no computador, no painel do carro, na geladeira, na calculadora, na câmera fotográfica, no pulso, no bolso, no sino da matriz, no totem da praça, na parede do supermercado, parece dizer a esta sociedade ansiosa que a hora chega. Lembra um pouco aquele corvo de Poe, multiplicado em instâncias digitais e sonoras, sempre a nos lembrar, sempre a nos preparar. Só que ao invés de voluntariamente vir pousar nos umbrais de nossas portas, o relógio onipresente fomos nós mesmos que o penduramos por todos os lugares.
O que será que quer nos dizer, para sempre ou nunca mais?

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Alyena II - Marônica

Aqui eu quero publicar a continuação da história de Alyena e suas aventuras e desventuras. Serão textos em capítulos ainda não revisados. Pretendo desenvolver todas as potencialidades que a primeira parte suscitou e dar um arremate final a ambas.
Não sei exatamente quantos capítulos publicarei aqui, mas não deixarei a história sem fim para quem segui-la realmente.



Alyena II - Marônica
Prólogo (sem revisão)


Zalian acordou num sobressalto. Sentia-se suado e ofegava. O quarto estava escuro. Na parca luz distinguiu os contornos  do corpo morno e sereno de Nayra, que dormia tranquilamente. 
Havia sonhado de novo. Tentou desesperadamente reconstituir as emoções tão vívidas e reais que experimentara. Sentou-se na cama e baixou a cabeça, apoiando a testa nas mãos. Fechou os olhos e foi como se a visse novamente. Ali estava ela, novamente, bela e sedutora como nunca. Seu corpo flutuando envolto no diáfano vestido branco que esvoaçava, escondendo e revelando contornos. Alyena!
 Não conseguia chegar a uma explicação razoável de porque estes sonhos o perseguiam e da obstinação em remoer acontecimentos de jaziam enterrados já há cinco anos. Alyena já não fazia mais parte de sua vida. Fora eliminada da sua realidade e da de seu povo. No entanto continuamente insistia em assombrá-lo. À noite, quando o calor de Nayra o confortava da carga de mais um dia de decisões que incidiam sobre a vida de toda a cidade, sentia-se pleno. Encontrava a paz naquele leito, naquela mulher, naquela amiga. Mas quando via os olhos dela se fecharem para o sono e seu lindo rosto desaparecer ao fechar dos seus próprios, penetrava numa outra alcova. Era transportado para outro esconderijo, a quatrocentos quilômetros distante dali, em linha reta para cima. Voltava para Alyena.
Perguntou-se novamente quando tudo começara. Premiu os olhos, queria rever todos os detalhes. Era importante não esquecer.
E tudo se revirava e emergia novamente, com a violência de um turbilhão. Uma obstinação que só o deixava após atingir o clímax.
Começou naquela maldita tarde quando se embrenharam pela cidade morta em busca da arma. Alyena estava exultante. Sua satisfação radiante aumentava ainda mais o magnetismo irresistível que a envolvia. Seu corpo alto e moreno a fazia parecer uma miragem contra os escombros da Cidade Morta. Ela estava sobre uma laje semi-destruída. Tinha um calçado peculiar, uma espécie de bota com tirantes entrelaçados que subiam até próximo aos joelhos, o que realçava os joelhos e as pernas morenas e bem torneadas. Do meio da coxa para cima um vestido bege, como as botas, a cobria desenhando bem a curva o quadril e fechando em torno da cintura estreita. A fazenda era rústica, própria para caminhada no mato, mas não falhava em delinear com graça os volumes dos seios, que se revelavam parcialmente por um decote trançado de corda. Zalian ainda trazia na ponta dos dedos a textura daquele tecido. Os braços estavam nus desde os ombros e reiteravam a morenice adquirida sob o sol dos trópicos. Sobre eles pousavam cabelos longos e castanhos que revoavam em pequenas mechas, como se brincando na brisa. Ela era vaidosa. Nos pulsos e pescoço, adereços os mais variados. Compreendiam artefatos sofisticados e tecnológicos, achados nas andanças, até ossos e pedras.
Zalian contemplou seu rosto novamente. Era de uma beleza cruel e esmagadora. A luz do entardecer trazia tons dourados à sua pele e fazia sobressair o branco de seu sorriso. Um sorriso perturbador, que não trazia a frívola alegria das jovens, mas a satisfação de uma conquista iminente. Seus olhos cor de mel tinham a firmeza da obstinação. Era difícil encontrar doçura neles, busca por justiça talvez. Não! Restituição. De algo que ela se julgava merecedora. Havia nos olhos dela um desejo de restituição. Em todo caso, tinham a capacidade de hipnotizá-lo. As sobrancelhas, estreitas e sérias, riscavam com precisão o contorno dos olhos e ressaltavam-lhes o desenho ao mesmo tempo que faziam sobressair a dureza do olhar.
Ali estava ela diante de si, afinal. Uma vez mais conjurada em seus pensamentos. Os fatos em torno dela, passados há quase dez anos, precipitaram-se rapidamente na memória.
Ele e ela começaram a exploração daquele terreno incerto. Em determinado momento ela desaparecera em um dos recessos das ruínas. Estava em busca da arma. Surgiu somente depois, quando ele já estava cercado e sendo golpeado pelo bando de pervertidos chamados Errantes. Ela trazia a arma consigo e eles recuaram ante a presença daquele objeto terrível. Lembrou que a chamaram de louca por carregar aquilo. Ainda hoje esta frase parece ter sido a mais certa em toda a história.
Depois saíram da cidade. Já era noite quando caminharam pela longa subida até o topo da colina que dava para o mar. Ela parecia embriagada pela descoberta. A trazia o objeto nas mãos como uma jóia de inestimável valor. Mas era uma arma, não uma comum, mas aquela com a alcunha de Infame, porque atacava covardemente pessoas a distâncias enormes, indefesas contra seu poder destruidor. Desmaterializava uma carga explosiva em sua câmara e a fazia ressurgir dentro do corpo da vítima a quilômetros do disparo. O atirador safava-se da punição, salvo pelo espaço que o separava do crime. E era justamente este o intento dela, matar sem ser punida. Ela queria matar, e conseguiu, embora não exatamente  a quem desejava.
Como foi doloroso quando ele descobriu que também fazia parte do plano, mas que sua parte havia quase terminado com escolta dela em segurança até ali. A última etapa seria ser a cobaia para o teste de funcionamento da arma. Zalian levou a mão ao peito. Eliminar testemunhas, esta era a intenção. Ela disparou impiedosamente contra ele. Não fosse o erro de regulagem ela realmente poderia ter explodido seu coração.
O que aconteceu depois foi o brilho de luz, a enorme esfera luminosa que levou a cabo a abdução de Alyena. Foi para a máquina em órbita, o satélite chamado Stella Pax, que espalhava terror na superfície do planeta com seus raios devastadores. 
Após isto foram anos de exílio pois ele não podia retornar aos seu povo, a seu líder, Maron, sem uma explicação para o ocorrido. Um tempo penoso, de solidão. Mas que lhe ensinou a paciência.
Neste momento as imagens começaram a se suceder em lampejos em sua cabeça.
A captura e a volta forçada ao povoado, que havia por aquela altura, se assentado às margens do rio. O interrogatório e a acusação do assassinato de Alyena. A sua afirmação de que ela estava viva, em algum lugar no céu. A formação do grupo que iria resgatá-la, que incluía seu amigo Steno, a garota do convento, Demini e a rainha das Jyssaras, Nayra. Lembrou-se da primeira vez que viu Nayra. Naquele momento não poderia jamais imaginar o quanto partilhariam juntos. Também lembrou-se com emoção das lágrimas de Yalena, irmã de Alyena, e de sua promessa de encontrá-la. 
E assim enfrentaram o longo caminho rumo ao norte. Um forte laço de amizade se formou entre eles.
Chegaram à casa de Oscar e Catarina Blankenburg onde boa parte do mistério envolvendo a Rede de Satélites e Stella Pax começou a se dissipar. Ainda nítido em sua retina estava final trágico do casal e o lampejo fulminante vindo do céu. Quase morrera junto com eles. 
Recordou destruição da ponte entre as grandes paredes de rocha no Vale do Monastério, e o corpo inconsciente de Nayra em seus braços quando a salvou de uma queda fatal. Foi a primeira vez que sentiu seu cheiro. Depois a parada no mosteiro subterrâneo onde o bondoso frei Eusébio lhes mostrou o caminho para o elevador orbital no extremo norte do país. Ele lhes forneceu o Barco, aquela mistura improvável de embarcação e carro ferroviário, que deslizava pelos trilhos, protegido pela campo de força de um fuzil Infame acondicionado em seu interior. Crispou os punhos à memória do ataque implacável de Malodamnus ao mosteiro e dos crimes contra aqueles homens pacíficos.
Não recordava ao certo quando soube que Alyena tinha se apossado do controle da estrela infernal. Sabia porém que tinha sido ela a executora da destruição de sua cidade e da morte de Maron. De cativa a captora, Alyena se tornara o perigo. Um momento foi crucial, quando ficou claro que deviam destruir Stella Pax e… Alyena.
Rapidamente repassou a aventura tortuosa a bordo do Barco, sempre para o norte, sempre sobre os trilhos. Lembrou a chuvosa e fantasmagórica São Paulo, o ataque do demônio ao bando de Lobsyan na estação militar subterrânea, os insetos mutantes, o curioso povo de Azocana e seu conflito com aqueles seres elétricos. Depois o percurso rápido e ininterrupto o terminal Korahner, seu destino final. Lá tiveram que driblar os canibais para iniciar o percurso até a órbita, a bordo do elevador orbital. Já no espaço, a fuga do desastre a bordo do pequeno veículo orbital. A aproximação da gigantesca Stella Pax, que ainda o impressionava, como se o estivesse envolvendo e sufocando.
Neste momento sentiu que a testa e as mãos suavam. Sua mente se atirou rápida pelos corredores internos da mega estação. As portas dos corredores brancos se sucediam como arcos de túnel em um trem acelerado. Com rapidez vertiginosa  logo estava na grande sala do observatório, parado. Lá embaixo resplandecia a Terra azul através do imenso vidro, mas a ele somente uma imagem importava, ela. Viu-se mais uma vez diante dela. Seu vestido branco, seu rosto ainda mais fascinante graças ao sutil halo azul de eletricidade. As emoções ressuscitaram à medida que o diálogo era revivido. O que ela dissera? Ela queria unir-se a ele. Pediu que ficasse com ela. Parecia sincera em suas palavras. Mas ela dissera algo que o deixara muito irado. Os amigos, sim. Ela fizera algo aos seus amigos, a Nayra. Agora ele tinha as mãos em torno do pescoço dela. E apertava, apertava. Seu coração disparou, suas mão tremeram. Deveria matá-la, era seu dever matá-la.
Ele prorrompeu num grito:
– Não!!
E num lamento baixinho:
– Me deixe em paz.
– Que foi, meu amor?
Zalian voltou-se. O rosto de Nayra pareceu-lhe tão doce e consolador sob luz tênue do quarto que suspirou de alívio.
– Nada, querida. Volte a dormir.
– São os sonhos de novo?
– Se fossem só os sonhos…

– Vem cá. Vamos, descanse. Amanhã será um longo dia.