Alyena II - Capítulo 1 A Represa
Naquela manhã Zalian levantou decido a não se importar mais com os pesadelos. Se não me preocupar com eles, vão embora, pensou. Um café da manhã reforçado e o beijo apaixonado de Nayra consolidaram sua decisão. Saiu para o sol. Do alto da colina onde estabelecera sua cabana dava para ver toda a cidade. Levou a mão à testa para se proteger da claridade.
O dia estava maravilhoso naquele final de verão. Ótimo para uma investida pelo mato nos arredores, uma voz interior lhe disse. Respirou fundo e conteve os pensamentos, lá embaixo Steno esperava para mais uma visita à obras da hidrelétrica. Haveria chance de retornar aos velhos tempos? Esta pergunta ficou dançando em sua cabeça junto com imagens dos lugares que conheceu em todas as andanças, enquanto descia pelo caminho de cercado de pedras e relva. Este era o seu lugar agora. Em caráter definitivo. Isto era um pouco assustador.
Contemplou novamente os telhados de materiais diversos que compunham a nova paisagem. Não era muito diferente da cidade anterior, tinha o mesmo espírito do improviso. Casas construídas de pedras ao lado de outras feitas de tijolos e argamassa ajuntados na Cidade Morta. Os telhados variavam de telhas normais a pranchas de diversos tipos e texturas. Nas ruas, um esboço do que poderia ser uma paisagem urbana no futuro, sem o confinamento estreito e atulhado das cidades antigas. Felizmente nossos organizadores procuraram ler a respeito antes de delimitar a largura das estradas, pensou.
As casinhas estavam se multiplicando. Por causa da derrota de Stella Pax e das histórias que correram pelos povoados houve uma grande confluência de gente para ali. As pessoas queriam conhecer quem teve a ousadia de derrubar a Estrela, queriam ver de perto seus heróis mitológicos. Principalmente sentiam-se seguras. Era muito difícil estimar com precisão quantos moradores havia, mas seguramente já passavam dos dez mil.
A outra cidade não tinha nome. Desapareceu incógnita. Nenhum registro histórico lhe fará a devida reverência no futuro. Era apenas um lugar, sem duração e sem nome. Mas não para Zalian. Ali tinha empenhados toda a sua história, amigos, valores. Mesmo sendo arredio, mantendo uma atitude reservada e sumindo de vez em quando, sempre voltava. Para ele aquele lugar tinha nome, se chamava lar. Lembrava-se nitidamente da coluna de fumaça negra em que seu lar se tornou, vista da distante colina onde se encontravam ele e seus amigos naquela tarde. Os raios devastadores despencavam do céu com fúria implacável e somente o rumor surdo e atrasado dos impactos ao longe trazia uma noção da destruição que causavam. Instintivamente cerrou os punhos à lembrança. Malodamnus o “imperador”, como o canalha fez-se chamar, foi quem perpetrou aquele ataque covarde. Covarde não porque Maron e as Jyssaras não tivessem meios e coragem para se defender de um ataque dentro do normal. Eles a tinham, sem dúvida. A covardia estava em usar a Estrela. Quem na face deste planeta poderia sonhar em fazer frente àquele poder formidável? Foi um massacre total, com um componente ainda mais odioso na execução: Alyena.
A população inteira teria sido varrida, não fosse a estratégia genial de Maron. Com um simples apertar de botões sobre a ponte, ele conseguiu dizimar mais da metade do exército de Malodamnus. A confusão de águas que causou permitiu que as mulheres e crianças pudesseam escapar. Muitas vidas foram salvas, mas o preço foi a sua própria.
Eis temos agora erguida, Marônica, a cidade fundada sobre os escombros da obra e da morte heróica de Maron, cujo nome assim fora dado em sua homenagem.
Zalian o tinha em grande conta. Sempre o respeitou e recebeu respeito da parte dele. Foi um grande líder que soube tomar as decisões certas pelo seu povo, inclusive a mais radical de todas, quando o que estava em jogo era a própria vida. Maron era um homem determinado até à obstinação, mas sabia ouvir os diversos lados de cada questão. Conseguia reunir em si a prevalência de um tirano com a consensualidade de um bom político. Poderia ser um governador, mas teria sido ainda melhor um rei. Era amado por todos, não havia dúvidas.
Agora o povo se voltava para ele, Zalian. E, Deus! Como esta carga se tornava pesada a cada dia. Não possuía, com certeza absoluta, metade das virtudes de seu predecessor. Como é possível que as coisas se abrangem e revirem de tal jeito que um sujeito como ele vem a cair numa situação dessas. Nos seus passeios pelo povoado, observava as pessoas distraídas em seus afazeres. Mas ao passar, sentia os olhares que lhe dirigiam, quase que como uma compressão na epiderme de suas costas. Olhares de Admiração, expectativa, confiança. Seria ele digno deles?
– Vamos, cara! Tá devagar hoje. Dormiu demais?
Steno era sempre um contento a mais na sua rotina diária. Sempre lhe trazia o espírito do folguedo com que se divertiram desde a infância. Seu cabelo indefinito entre o louro e ruivo caia sobre os olhos em quanto ele ria e manobrava o guidom da bicicleta em que vinha embarcado.
– Onde arrumou isto?
– Agora temos estradas, velho! Nada melhor que pedalar. Se quiser arrumo a da Demini emprestada para você.
– Pois sim! Trate de ir apeando porque eu não acelerar um minuto minha caminhada.
– Ih! Tá de mau humor. Que foi, a rainha te destronou?
– Não dormi bem.
– Ah, então ela não te destronou…
Zalian deu safanão no amigo e com o dedo em riste disse:
– O convívio com aquela pirralha está te deixando folgado. Te orienta…
Alcançaram a margem do rio e a seguiram à montante. Era uma caminhada de quarenta minutos até a barragem. Usavam este tempo para suas reuniões matinais particulares antes de conversarem com o pessoal. Este seria um dia um pouco mais acelerado pois haveria uma assembléia do Conselho à noite.
Quando chegaram a atividade já estava em bom ritmo. A muralha da nova represa era bem maior que a anterior. Steno utilizou toda a experiência adquirida para ampliar ambiciosamente o empreendimento. A arranjo topográfico era propício, ele tinha consciência. Aquele rio estava disposto a dar muito mais do que poderia aproveitar o projeto anterior, improvisado e sem maquinário adequado. Agora, com a ajuda das máquinas, sobretudo, dos tratores movidos a óleo diesel, tudo parecia possível. E nem tudo foi perdido na destruição. Eles puderam aproveitar boa parte do canal de desvio do rio, o que significou uma relevante economia de trabalho. Pelas suas estimativas aquelas turbinas teriam capacidade de prover eletricidade para uma Marônica de cinquenta mil habitantes com folga.
Antes de se reunirem com os demais, Steno convidou o amigo para subir ao topo da represa. À entrada do portão feito de ripas e tela de arame foram recebidos por dois encarregados. Ambos empenhavam-se discretamente em chegar primeiro aos cumprimentos.
– Bom dia, mestre Steno – saudou Estevão, que era do mesmo povo que ele. Em seguida voltou-se com reverência acentuada para Zalian – Bom dia, mestre Zalian.
Tinha nas mãos duas canecas de alumínio bastante amassadas, mas com um fumegante conteúdo de café, o que foi imediatamente bem-vindo.
Em seguida foi a vez da representante das Jyssaras, Emília, que dividia com Estevão o poder nas atividades operacionais da obra.
– Bom dia, mestre Steno.
– Bom dia, Emília. Você está especialmente bem uniformizada hoje. Esta farda lhe cai muito bem.
A mulher estava por volta dos quarenta anos e tinha um porte de quem se exercitava diariamente. O código guerreiro das Jyssaras impunha uma disciplina rígida àquelas mulheres. Ela recebeu o elogio com reserva. Virou-se para Zalian e o cumprimentou solene:
– Sua Alteza. – Fez uma curta mesura.
Steno levou a mão à boca e Zalian podia apostar que estava segurando uma gargalhada. Sem jeito e com o semblante solene aceitou a saudação, anuindo com a cabeça. Passaram a diante se subiram as escadas que davam para o corredor largo e em arco de piso cru.
– Não diga nada!
– De modo algum, vossa Alteza Real. – Respondeu o outro agora sem conter o riso.
Vendo que o amigo ficara amuado, contemporizou.
– Zalian, tenha um pouco de compaixão. É a primeira vez que a mulher lhe dá bom dia em meses desde que assumiu a função. Imagine quanto não deve ter sido difícil para ela rebaixar-se a cumprimentar um homem que está acima dela? E mais, que dorme com a sua rainha
– Sou marido dela!
– Dá no mesmo. Tenha um pouco de paciência com a mulher.
– Não estou chateado com ela… é que…
– Amigo, você é o chefe, o grande Mestre Zalian. Deve aceitar isto.
– Bah! – Disse o outro, levantando s mãos e deixando-as cair enquanto se aproximava da amurada – Você sabe que não tenho esta vocação.
– Você acha que não tem.
– Para mim, Steno, a vida se resumiria em me embrenhar no mato e caçar. Só isto. É pedir demais. Esta coisa de administração me cansa.
– Não pense assim, é só você…
– Esqueça. Não adianta conversarmos tudo isto de novo.
Um silêncio interpôs-se entre eles.
– Você acha – reatou Zalian enquanto contemplava a floresta do outro lado do rio – que conseguiremos colocá-la para trabalhar no mês que vem?
– Temos que conseguir, Zal. Estamos consumindo muito combustível nos geradores e nos veículos.
– Hum…
– Os reservatórios dos postos de gasolina das cidades próximas estão rareando e das distribuidoras também. Alguns postos ainda não tinham sido equipados com acondicionamento avançado na época do cataclisma e seus combustíveis não eram ainda de última geração. Simplesmente tiveram seu conteúdo apodrecido. O mesmo com os carros, você sabe.
É importante que fiquemos livres desta necessidade e passemos a usar somente motores elétricos.
– Vamos buscar mais longe.
Steno juntou-se a ele olhando para a construção abaixo
– O problema é que tem mais gente atrás dos combustíveis. Quanto mais as equipes se distanciam de Marônica, mais ficam expostas a ataques. Isto sem falar que acabamos invadindo territórios que outros povoados consideram como seus.
– Tem razão, não havia pensado nisto – levou a mão ao queixo, o verde do mato prendia sua atenção – Vamos chamar mais gente para acelerar a obra. Este pessoal não pára de chegar de tudo quanto é canto. Vamos pô-los para trabalhar.
– Bem, este pode ser mais um assunto para a reunião.
– Sim, claro…
Um movimento rápido na floresta chamou sua atenção. Deu uma leve cutucada em Steno e disse:
– Você viu?
– Viu o que?
– Ali adiante! Entre aquelas árvores.
Zalian acurou a visão para ver se capturava o movimento caso se repetisse. E ele se repetiu, mas um pouco mais à direita.
– Ali!
– Ali, onde, Zal? O que você está falando?
Desta vez o fenômeno aconteceu mais claro e mais devagar, embora fosse numa fração de segundos. O que ele viu ressaltou-se no fundo verde escuro das árvores: uma mulher de cabelos longos e um esvoaçante vestido branco.
– Está tudo bem, amigo? – Steno segurou-o no ombro.
Zalian forçou os olhos, mas nada restara além dos musgos, ramos e folhas balançando na brisa.
– Tudo bem, tudo bem. Mas acho que não dormi nada bem mesmo.